Perto de casa há um parquinho. Passo por ali todo dia e quase nunca vejo uma criança. O lugar não me diz nada, parece esquecido, envelhecido como toda a quadra. Não consigo adivinhar o passado que ele esconde. Por vezes, o cronista Daniel Cariello também passa por ali. Mas que diferença de sentimentos aquele parquinho evoca! Porque Daniel cresceu naquela região, viu os anos de glória daquela quadra. Disputou partidas memoráveis no parquinho e viveu ali por perto algumas de suas melhores histórias da infância. Essas lembranças perfazem grande parte do seu novo livro de crônicas – “Cidade dos sonhos – Crônicas brasilienses (Selo Longe, 2015). E de repente eu começo a imaginar como deve ter sido bom viver, crescer aqui em Brasília.

Não que aquela quadra pareça hoje, ao Daniel, melhor do que a mim. Ele mesmo reconhece: é um outro lugar, que em nada lembra o período de sua infância. Sempre que passa por ali sente uma dor no coração, porque é como se o terrível pesadelo que é tema da crônica-título tivesse se tornado realidade: as casas estão cercadas, eletrificadas, com lanças pontiagudas no portão, as áreas de lazer estão menores e vazias, e nem mesmo o moço do picolé continua a passar. A cidade, no entanto, resiste nas suas lembranças, e delas passam para as crônicas, que não tem, em geral, essa melancolia – são antes celebrações desta inusitada cidade que é capital do país.

Convenhamos, Brasília é, à primeira vista, muito estranha. As ruas não têm nome de gente, são letras e números, divididas em eixos, eixinhos, eixões, cheias de tesourinhas e agulhinhas, nas quais o motorista terá grande sorte se conseguir encontrar a saída. A numeração das quadras segue uma lógica curiosíssima que exige no mínimo três meses de permanência na cidade para conseguir assimilar. E mesmo quando isso acontece é preciso estar atento aos pontos cardeais – pode ser sul, pode ser norte. Tudo é dividido por setores e há ruas só para as farmácias, ou só para as elétricas. O pedestre, este, segundo dizem, não passa de uma lenda urbana.

É com bom humor que Daniel Cariello passa por todas essas características locais. Ótimo criador de diálogos, ele capta conversas picadas dos brasilienses, ao mesmo tempo em que promove um resgate de personagens, pontos turísticos, de músicas da cidade e até suas gírias – um ônibus, em Brasília, também é um baú, enquanto que uma bicicleta pode ser um camelo, como, aliás, foi imortalizado em música da Legião Urbana. A propósito, o célebre show do grupo liderado por Renato Russo na capital federal em 1988 foi visto por Daniel, assim como a última partida de Garrincha, em 1982 – peças da história de uma cidade, memórias de quem nela crescia.

A crônica também é, afinal, uma maneira de impedir que a história se perca. Mas mesmo com a passagem do tempo, existem coisas em uma cidade que permanecem. Pode ser o motorista da van, que é o mesmo de seus tempos de criança.  Ou então o seu Rafael, que ainda passa o dia inteiro sentado, observando o vai e vem de carros, bicicleta e pessoas na Asa Sul. Às vezes é o repentino surgimento de pipoqueiros na Torre de TV. São marcas que resistem ao tempo e reforçam o sentimento de identidade do cronista com a cidade. É como ele mesmo observou: “Um ponto de referência na vida de alguém é algo com uma carga sentimental única”.

Temos, na leitura dessas crônicas, muitos encontros com o Daniel criança, personagem feliz de uma infância que, aparentemente, já não se vive nem em Brasília nem fora dela. Mas também há oportunas aparições de sua filha Louise, ao lado de quem Daniel fará nevar para que as suas bonecas tenham onde esquiar, completará um álbum de figurinhas nem que precise imprimir os cromos da Internet, colará estrelinhas no teto para que possam viajar a bordo de foguetes espaciais. Não se trata, portanto, apenas do cronista que revive a sua infância: são marcas que ele deixa para que um dia a sua filha tenha tantos motivos para se recordar desses anos quanto ele teve ao crescer em Brasília. Porque é a infância que, em toda parte, prevalece.

E no fim aquele parquinho já não me parece mais tão desprovido de graça assim.

Henrique Fendrich